Continuação de "A Boutique e a Padoca", pequena série que discute a diferença entre 'boutiques de tecnologia' e as 'padocas de periferia' - o hiato entre um modelo proposto (baseado em inovação e produtos de alto valor agregado) e o modelo atual adotado por várias empresas tupiniquins para a exportação de produtos e serviços de TI.
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O fato de a Colaboração (de cérebros que não 'pertencem' à empresa) ser um dos 4 pilares da nova forma de se posicionar no mercado não isenta as organizações da obrigação de montar grandes times. Como vimos no artigo anterior, a colaboração só tem início a partir de uma idéia ou produto ou serviço - devidamente abertos. Uma idéia ou produto ou serviço atraentes só podem ser concebidos e iniciados por um grande time.
Não grande em tamanho, mas em capacidade criativa. Trata-se do exato oposto do que percebemos hoje em nossas 'padocas'. Ao estruturarem suas ofertas mirando o equivocado alvo do baixo custo, essas empresas se fizeram 'fábricas'. Apostam em um rígido processo que deve nortear o funcionamento de uma 'linha de montagem' de software. Isso será discutido no próximo tópico. O ponto aqui é outro: a aposta em profissionais de baixo custo [1].
Uma 'boutique de tecnologia' é muito diferente. Exige profissionais altamente qualificados, experientes e cheios de tesão. Gente que raramente é de baixo custo. Gente que muito dificilmente aceita contratos de trabalho fajutos e/ou draconianos. Gente rara em Pindorama, e por isso tão "cara".
Ao decidir pela conversão para o modelo 'boutique', mesmo que parcial e de pequeno porte, a organização deve questionar todos os seus princípios e práticas. A começar pelo processo de seleção e contratação. Em setembro de 2006 escrevi uma pequena série sobre a "Contratação de Gente Criativa". Não vou me repetir aqui. Só reforçar a mensagem de que o processo é consideravelmente diferente. Alguns tabus como a exigência de curso superior, por exemplo, devem ser seriamente questionados [2].
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'Boutiques' top de linha, como a Google, dão muita liberdade para seus profissionais. Eles podem, por exemplo, escolher seus projetos. E mudar de projeto sempre que desejarem. O que pode parecer um caos para um gerente 'tradicional' é, na realidade, um grande diferencial. Uma garantia de que o profissional sempre estará onde se sente melhor, onde se sente mais útil. Onde, consequentemente, ele será mais produtivo.
No caso da Google só há um instrumento que a empresa e seus gerentes podem utilizar para 'manipular' seus colaboradores: incentivos. Financeiros! Projetos estratégicos garantem para seus participantes uma bonificação diferenciada. Não promessas soltas, condicionadas ao sucesso da empreitada, mas grana de verdade no final do mês, no hollerith (ou seja, grana legal - nada de "por fora", ok?).
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O Maior Custo da Inovação
Uma 'padoca' é concebida para não errar. Equipamentos, receitas e ingredientes são destacados para o combate aos erros. Pessoas são penalizadas pelos erros. Prevalece a busca obsessiva pela 'qualidade total'. Cria-se assim uma cultura que é antagônica àquela que deve caracterizar uma 'boutique'. Antes de um acerto, uma 'boutique' erra muito. E esse é o seu maior custo.
A mais importante ferramenta do físico é sua cesta de lixo.
- Albert Einstein
As duas ferramentas mais importantes de um arquiteto são a borracha na sala de desenhos e a marreta na construção.
- Frank Lloyd Wright
Em 'boutiques' a la Intel ou Apple, os acertos carregam em seus preços todo o custo dos erros. Google e outras 'boutiques' de última geração têm uma estratégia um pouco diferente: uma 'vaca leiteira' (busca e publicidade, no caso da Google) banca todos os fracassos. Neste caso, faz-se necessária uma característica muito cara para o mind-set de 'padoca': o desapego, a noção exata da linha que separa persistência de teimosia. A Google não teve 'dó' de cancelar seu projeto "Answers", por exemplo. Ou seja, há um limite de tolerância para erros. E todo projeto bem definido conhece o seu.
Numa 'boutique' os erros raramente são penalizados. O pessoal nunca convive com o medo do fracasso. Isso é particularmente importante em fases iniciais de planejamento ou definição de um produto ou serviço. Idéias que parecem estúpidas em um primeiro momento podem se provar grandes, revolucionárias ou inovadoras. Aliás, na maioria das vezes, são as idéias que enfrentam maior resistência aquelas com maiores chances de sucesso [3].
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Processos
Uma 'padoca' vive da repetição infinita de processos pré-definidos. Uma 'boutique' não sobrevive se não apresentar uma nova coleção a cada estação.
A montagem de fábricas de software para o atendimento do mercado externo forçou uma corrida por coisas caras como as "certificações" CMMI [4] e afin$. Garantias que são oferecidas para os clientes mais ou menos assim: "Garanto executar meus projetos repetindo os acertos, limando os erros, e melhorando sempre". Não há nada de errado com a mensagem. O problema é que uma 'boutique de tecnologia' não depende de nada disso.
Uma 'boutique' é avaliada pela inovação ou criatividade [5] de seus produtos e serviços. Uma 'boutique' moderna:
- É avaliada pela qualidade das conversas que ela mantém com seu mercado - lembre-se: suas transações comerciais só começam depois que a conversa é estabelecida e mantida (vide YouTube, Facebook, Boo-Box etc);
- Consegue iniciar conversas porque antes estabeleceu relacionamentos. Vimos no artigo anterior que o compartilhamento de produtos e serviços abertos e relativamente livres é o melhor convite para a colaboração. E a colaboração de clientes e parceiros significa a criação de sólidos relacionamentos.
A 'padoca' precisa de um processo forte, relativamente rígido. Claro que as fábricas jogaram suas fichas em padrões como CMMI, PMBoK e afins. Saca só: a palavra "Criatividade" não aparece em nenhum momento no documento CMMI for Development 1.2 (ago/2006); a palavra "Inovação" só aparece no nome de uma área do processo, "Organizational Innovation and Deployment" (OID - Nível 5). Ou seja, não tem nada a ver com a inovação que tratamos aqui; a palavra "Criatividade" aparece 3 vezes no PMBoK (Terceira Edição, 2004), mas também não tem nada a ver com a criatividade que buscamos aqui; "Inovação" não tem uma única ocorrência no PMBoK. É claro que Criatividade e Inovação não estavam no escopo dessas iniciativas.
Mas elas são tudo em uma 'boutique'. É por isso que as 'boutiques' precisam de um conjunto de ferramentas bastante diferente daquele adotado pelas 'padocas'. Pensou Ágil? Adjetivo ou substantivo? Brincadeirinha...
Como eu disse em outro lugar, existem muitas bullshitagenzinhas no mundo "Agile". Algumas das principais são o radicalismo e a impaciência de alguns proponentes. Nada muito sério. Mas, o fato é que estão lá (no mundo "Agile") algumas das práticas mais recomendadas para as 'boutiques'. Não há espaço para ser muito específico, então vamos para as principais:
- Liberdade: a 'boutique' sabe escolher as ferramentas e práticas mais adequadas para determinado projeto. Scrum, OpenUP, FDD, salamemingüê? Não importa. Tanto que não há restrição alguma à adoção de algumas práticas estranhas ao mundo "agile". O importante é ter o melhor. E mais ágil (adjetivo).
- Auto-gerenciamento: "Aquilo que é criativo deve criar a si mesmo", já dizia o poeta John Keats lá no século XIX. Uma equipe criativa gerencia a si mesma. O que não tem nada a ver com aquelas proposições de equipes de "iguais", de especialistas-generalistas ou vice-versa (sei lá, nunca entendo e a proposta sempre me soa um tanto "facista").
Criatividade vem da diversidade. Uma equipe criativa é plural. É multi-disciplinar: recheada de Especialistas de verdade. Como o saudoso (e cada vez mais necessário) Peter Drucker falou [6], "Conhecimento, por definição, é especializado. Com efeito, as pessoas realmente detentoras de conhecimentos tendem ao excesso de especialização, qualquer que seja seu campo de atuação, exatamente porque sempre se deparam com muito mais a aprender".
Drucker nos ajuda inclusive a entender outra grande diferença entre as 'padocas' e as 'boutiques': "A organização baseada em informações exige, em geral, muito mais especialistas do que as empresas tradicionais do tipo comando e controle".
Alguém poderia dizer: "oras, mas as nossas 'fábricas' são organizações baseadas em informações". Sim, então tente explicar porque elas são "do tipo comando e controle". Incoerente, não? Mas este é outro assunto.
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Agora falta falar um pouco sobre os produtos e serviços de uma 'boutique'. Algo do tipo: "onde colocar minhas fichas?". Com certeza, sairá outro looongo papo. Então fica para a próxima. Inté!
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Notas:
- É relativamente comum que esse pessoal de "baixo custo" seja chamado de "macaquinho". Várias brincadeiras pintaram até então. Quero ver agora que descobriram (no Japão!) que os chimpanzés têm uma memória melhor que a nossa. Um passo para a metáfora perder sentido? hehe..
- Uma bela 'boutique' da Oceania (ThoughtWorks) acaba de 'roubar' um de nossos grandes caras, o Philip "Shoes" Calçado. Ele não tem diploma.
- Duvida (que são as idéias que mais sofrem resistência aquelas com maiores chances de sucesso)? Leia o excelente "How to be Creative" (paper gratuito - ChangeThis) de Hugh McLeod.
Segue duvidando? Então mergulhe um pouco mais e leia "The Myths of Innovation" de Steve Berkun.
Não se convenceu? Então pegue suas idéias que todo mundo aceita de boa e monte um boteco (de Boa). Ou uma padoca (de Zeca), sei lá. Só sei que não recebi jabá por essa. - Coloquei "certificações" assim, entre aspas, pq entendo que CMMI não é só uma certificação. Reconheço sua utilidade para determinados tipos de organizações também. A única coisa que tentei enfatizar acima é que CMMI não tem nada a ver com uma 'boutique de tecnologia'. Assim como o PMBoK, ISO, CSM, PMP, sorvetecolorê e afins. Só isso.
- Apesar de sempre ver os termos "inovação" e "criatividade" serem utilizados de forma intercambiável, sigo com Domenico De Masi:
Inovação significa pequenos incrementos em cima de uma idéia já conhecida - pequenos mas valiosos. Inovação é uma Evolução. Já um produto realmente criativo representa uma Revolução. A diferença é grande. - Citação do Drucker foi surrupiada do artigo "O Advento da Nova Organização", publicado originalmente na Harvard Business Review em 1988.
- Ok, você não viu o número 7 no texto acima. Acontece que sou fanático por listas com 7 itens: "Os 7 hábitos dos enroladores de plantão"; "Os 7 hábitos dos jogadores-chinelinho"; "As 7 Maravilhas da Zona Verde de Bagdá" e por aí vai. Brincadeirinha...
Acontece que o texto desta série foi MUITO inspirado em outros trabalhos que não foram citados explicitamente. Segue a listinha:- Confused of Calcutta, de JP Rangaswami. Todo o papo sobre Relacionamentos -> Conversas -> Transações.
- Wikinomics, de Don Tapscott e Anthony Williams. De lá (e do livro) surrupiei "Abertura, Colaboração (peering), Compartilhamento e Ação Global".
- CMM-BR e UML-BR, dois grupos de discussão. Nem vou citar nomes, mas vieram de lá várias idéias e contra-idéias (?) desta série.
Contra-idéia?!? D'onde eu tirei isso? Sei lá, só sei que expressa exatamente o que eu queria dizer. Homenagem aos "do contra". Minha eterna fonte de inspiração.
- Confused of Calcutta, de JP Rangaswami. Todo o papo sobre Relacionamentos -> Conversas -> Transações.
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